quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O ESPECTRO DA CRIPTA


O Episódio 23 da SAGA DOS PRODÍGIOS aparece após tanto tempo...




BORRÕES E JOGOS DE LUZES INUNDARAM OS OLHOS de Manyu conforme uma fileira de holofotes era ligada, em sucessão, no fundo da cripta. Lacernos mantinha-se contra a fonte de luz e isto fazia sua figura parecia mais estranha e apavorante ainda.


“Estamos há três dias tentando, barão. Ele não parece reagir muito, está só ficando mais doidão.” A voz de um daqueles que havia resgatado Manyu, um homem magrelo e tatuado chamado Grassi, fez-se ouvir perto do ouvido esquerdo do rapaz. As percepções do jovem estavam em rápida mutação e ele sentia – era bizarro e inacreditável – a textura barba por fazer de Grassi vir junto com seu hálito um tanto desagradável.


Outra voz, feminina, interrompeu Grassi, “Bobagem. Li todos os detalhes do Livro Secreto de Vincent, o Vulto, e estou lendo todos os sinais que ele passa, então na verdade posso dizer que estamos na cúspide da...” A voz se desfazia misturada com sons que vinham com os fachos de luz – os sentidos de Manyu Daury eram um turbilhão, atiçado pelo cheiro dos incensos, pelas beberagens que lhe obrigaram a tomar, pelos três dias em isolamento no escuro, intercalado por clarões como aquele. A voz interrompida não era de alguém do pequeno grupo que trouxera Manyu a Lacernos, e sim de uma mulher que vivia naquela cripta e pouco saía.


“Não precisa explicar tudo ao garoto, dra. Urizen,” disse Lacernos, “quero que tudo seja o mais espontâneo possível; o menino vai ter que nos ajudar a ligar a máquina. Ele tem uma dívida para com nós. Não é mesmo, Manyu-zal?”


Zal. A contraparte do pronome de tratamento zul. Seu feminino é zala. Significado literal: laço, elo. Uso: pessoas da mesma família. As lições de gramática do velho Nehru Daury se repetiam, indeléveis, nos ouvidos de seu neto Manyu, atrapalhando o entendimento das falas dos bandoleiros ao seu redor. A base do Barão Darin Lacernos – assim era como ele pomposamente se apresentara quando conheceu Manyu – não ajudava em nada, com sua acústica ecoante. Pelo contrário, deixava o rapaz a ponto de enlouquecer.


Naquele momento ele desejou ter sua irmã perto de si. Não sabia o que havia acontecido com ela. Um trecho de uma fala de Lacernos conseguiu atingir seus ouvidos, “...cavalgar uma aranha daath seria uma boa...”, e a palavra daath soava pesada como água entrando nos tímpanos e causando dor de cabeça. De repente, tudo mudou.


A visão de Manyu era agora clara e nítida, mas... diferente do que ele jamais sentiu. Era como se ele tivesse múltiplos olhos; podia enxergar de diversos ângulos diferentes; e o que enxergava certamente não era mais a cripta no subterrâneo do Nomo das Torres, onde estava aprisionado.


Enxergava a paisagem deplorável do Ermo da Condenação.


Sentia também seus pés mergulhados em parte numa areia fofa e úmida – com ênfase em pés: muitos pés, muitos pares de pés. Mas todo esse estrondo de novas percepções foi cruelmente interrompido por um pé dourado que vinha na direção de Manyu, batendo com um impacto fortíssimo. Ele havia recebido uma voadora direto na barriga – ou seria nas costas? As impressões sensoriais eram confusas.


Manyu teve pouco tempo para aproveitar seus novos oito pontos de vista; em pouco tempo o agressor dourado esmagava alguns de seus olhos, e Manyu em meio a dor percebia que era um neander vestido com alguma armadura estranha. Tentou revidar de alguma forma, mas outro ponto de seu novo corpo fora atingido – agora uma de suas gigantescas patas fora cortada fora!


Enquanto o assassino vestido de negro recuperava o alfange que o havia mutilado, Manyu pensou em destruir a ambos – sabia que tinha poder para isso, mesmo tendo sido tantas vezes atingido. Era uma sensação muito parecida com um instinto, vinha do fundo de sua mente, ou de algo abaixo de sua mente.


Mas antes que conseguisse fazer algo, ficou paralisado – lá estava ela, do lado de uma moça de azul e outra de vermelho, sua irmã Dova. 


Pensou em pedir ajuda, mas as palavras não saíam da boca. E Dova parecia estar do lado de seus agressores, porque ela e a de vermelho ladeavam e apoiavam aquela... criatura de azul que antes era uma moça, agora coberta de placas quitinosas e olhos brilhantes, tudo em diferentes tons de azul... uma criatura que ergueu suas mãos – nelas haviam duas espadas curtas, de um metal brilhante – e as uniu criando um relâmpago de fogo azul que foi certeiro atingir o corpo aracnídeo que Manyu habitava.

O espectro do rapaz, que habitava a daath por meio de alguma feitiçaria desconhecida, não conseguia fugir, nem revidar. Ainda mais quando Dova executou uma incrível acrobacia e veio graciosa, ombros à mostra, numa postura de indiferença e agressividade jamais vista, com um cajado branco atacar o irmão dentro do corpo da aranha daath.



terça-feira, 27 de setembro de 2011

DESPERTAR BRUTAL

A SAGA DOS PRODÍGIOS continua com seu Episódio 22:


AS TRÊS PRODÍGIOS CAMINHAVAM CAUTELOSAMENTE pela ravina, seguindo as indicações deixadas no terreno por Azif: um rastro óbvio ali, um grafito rabiscado no paredão crescente. Charya teve a impressão de que o rapaz encontrava-se nas bordas do alcance de sua telepatia – mas ainda assim o sentia com mais vividez do que podia detectar a presença de Euro.

        Mais cedo, antes de saírem do acampamento contrabandista para a primeira missão designada pelo Grão-Mestre, Charya reuniu a todos e conseguiu estabelecer aquele elo telepático forte – ela ainda não sabia o quanto aquela ligação iria durar, mas seria útil tanto para comunicação quanto para coordenação em caso de batalha.

        A maior dificuldade em estabelecer o elo havia sido com Berya (óbvio, dado que se conheciam há pouco tempo e a natureza um tanto retraída da Prodígio Azul) e – isso a preocupava – com Euro. Natural que sentisse Azif com mais força, já que guardavam dentro de si aquele amor não-concretizado, mas Euro parecia especialmente desfocado, desconectado... deprimido, talvez. Quanto a Dova, bem, a menina tornava tudo mais fácil, era uma catalisadora.

        Charya a princípio imaginou que os acontecimentos durante a semana em coma haviam revelado a Euro mais sobre si mesmo do que ele gostaria de saber. As memórias vagas de ser uma espada – uma espada como a katana que empunhava naquele momento, enquanto as três desviavam-se das rochas que atravancavam o caminho – nas mãos de Dova mostravam a Charya uma luta sem sentido de Euro contra  o próprio meio-irmão, e o murro descomunal que atingira a Prodígio Branca no rosto.

        As cenas haviam acontecido dentro da mente da própria Charya, claro, mas a realidade daquilo tudo era inegável para os três combatentes, e a Prodígio Vermelha saboreava devagar o paradoxo de que, apesar dela também ter estado lá, na forma de espada, e de toda a aventura ter se desenrolado dentro daquele espaço em branco – espaço lethean, como o chamavam os neander – suas memórias eram mais tênues e ela não tinha noção direta do que havia acontecido com Berya e Euro.

        Euro! De repente, aquela presença fraca do meio-neander, na orla extrema de sua percepção telepática, tornou-se vívida e pulsante – Charya enxergava sinestesicamente o ponto amarelo-claro virar um dourado reluzente, e sair apressado do alcance da mente da líder dos Prodígios.

        Rápido! Vamos dar apoio a ele, soou a voz da Prodígio Vermelha na mente de Berya e Dova. Mas logo Charya percebeu que não tinha ideia do que poderiam enfrentar; e que talvez estivessem caindo numa armadilha; mas a ordem já havia sido dada, e não queria parecer indecisa.

        Dova sentiu o cheiro de baunilha que era característico quando Charya tocava sua mente, uma pontada de medo, mas materializou seu armadoxo com facilidade e marchou para a frente na ravina onde antes Azif e Euro haviam se embrenhado. O báculo em sua mão servia não só para desferir golpes, como ajudava a focar sua intuição. Que diferença de quando tinha a “espada de Charya”, percebeu Dova, o descontrole de suas emoções naquela ocasião era evidente quando comparado à estabilidade que o báculo lhe fornecia.

        Percebeu também de imediato que “ele” era Euro e não Azif; e algo também lhe dizia que precisava correr, correr como Euro havia feito – ela não havia visto nem ouvido a investida do meio-neander, mais à frente, mas sabia o que havia acontecido com ele, o elo telepático entre todos estabelecido por Charya aumentava tremendamente a empatia e a ligação que sentia com os outros Prodígios. É como se eles fossem minha verdadeira família, pensou Dova, e logo se arrependeu, lembrando do avô e do irmão Manyu. As cenas de quando fez a “cópia” do irmão em pedacinhos a estavam assombrando desde que despertara do coma.

        Tentou ignorar a recordação e acompanhou as outras pela ravina, já ouvindo a voz de Azif gritar em sua mente, ecoada pelos poderes de Charya: Aranha gigante, demônio do Ermo, fardo que devemos suportar, cicatriz monstruosa dos erros de uma era passada, eu te exorcizo em nome da Rainha Mercúrio, que o Grande Goog me dê sabedoria na batalha, aquilo era uma prece, um mantra proferido em desespero mas solenidade. O tom apavorou Dova e reconfortou Berya – era idêntico ao tom dos sacerdotes da Terra Castanha.



        Na planície negra, a terra fofa pelo húmus não atrapalhou em nada o ímpeto de corrida de Euro em direção à aranha azul – corria poucos centímetros acima do solo, sem ser impedido por nada em seu caminho. Os últimos passos da investida na verdade foram se tornando um grande salto, e de um salto uma voadora direto no grande abdômen do monstro, que recuou ferido e assustado pelo brilho dourado do ataque – era como se estivesse distraído e fosse pego de surpresa.

        Aranhas daath não costumam ser desatentas assim, pensou Azif ao contemplar a cena, não são símbolos da vigilância incansável? O Prodígio Negro não perdeu muito tempo pensando após completar sua prece, e impeliu seu corpo pelo espaço na direção dos dois combatentes, buscando ajudar Euro a não ser trucidado pelo contra-ataque da aranha. O impulso arremeteu Azif para a frente, distorcendo o espaço e jogando-o direto para a planície de húmus.

        Foi então que ali, a cerca de dez metros de Euro, notou o que havia acontecido com seu meio-irmão: besouros e outros insetos dourados enxameavam sobre seu uniforme-paradoxo, e antes que a daath pudesse reagir, Euro vestia novamente placas douradas sobre o uniforme amarelo, formadas a partir dos minúsculos insetos que o paradoxo havia liberado. Novamente, como havia sido no sonho coletivo há tão pouco tempo. Só que agora era tudo real.

        Daquele ponto de vista Azif não conseguia enxergar o terrível terceiro olho na testa do Prodígio Amarelo, mas sabia que ele podia estar ali encimando uma tiara dourada, e alterando o comportamento de Euro como havia feito no espaço mental de Charya. Sacou a cimitarra do uniforme, pronto para intervir contra o próprio irmão se fosse preciso, de novo – mas agora havia a gigantesca aranha prendendo a atenção do “herói da Terra Castanha”, então era melhor ajudá-lo a matar o demônio do Ermo antes que algo pior acontecesse.

        Aproveitando o atordoamento da aranha daath, Euro ergueu as descomunais manoplas douradas que agora cobriam suas mãos, ajustou melhor sua posição em volta do monstro e, de mãos entrelaçadas, golpeou os muitos olhos da aranha, esmagando alguns no processo.

        Aliviado, Azif notou que o terceiro olho estava lá na testa de Euro, mas fechado. Empunhando a cimitarra que lhe serve de armadoxo, o Prodígio Negro sentiu de repente a presença de Dova correndo pela ravina em sua direção, e numa intuição profunda arremessou a cimitarra, girando contra a aranha, como nunca havia feito antes. A armadoxo rodou pelo ar como um bumerangue, cortando afiada uma das pernas articuladas do monstro, mas não retornou às mãos do dono – ao invés disso, foi o dono que se rematerializou com a cimitarra assim que esta fez seu estrago, num teleporte ainda mais espetacular pelo fato de que Azif reapareceu portando a máscara de gás e a musculatura artificial que havia sido característica do sonho compartilhado dentro da mente de Charya.



        Quando virou a cimitarra na mão para dar-lhe balanço, sentiu-a mais pesada: durante o arremesso ela havia de alguma forma aumentado de tamanho, estava mais para um alfanje que uma cimitarra curta – forçando Azif a empunhá-la com as duas mãos.

        Berya era um pouco mais rápida que as outras duas Prodígios e foi a primeira a chegar onde a ravina desembocava na planície negra.  Uma mistura de excitação e horror tomou a Prodígio Azul; sentia uma energia incomum percorrer todo o seu corpo da cabeça aos pés, deixando seus cabelos  arrepiados. Estacou bem onde o caminho pedregoso da ravina dava lugar ao húmus preto da planície, já com sua espada curta na mão. Quando as outras duas chegaram notaram de imediato como os olhos de Berya haviam se enchido de um azul profundo e de uma determinação intensa – como se ela fosse soberana de si, de tudo e de todos à sua volta.

TEIAS DE FOGO AZUL

Arthur Ferreira Jr.'. retoma a SAGA DOS PRODÍGIOS em seu Episódio 21:




UMA ENORME ARANHA DE PELOS AZULADOS escalava a parede úmida da cripta, indo em direção a uma teia na junção das paredes com o teto, onde a esperava outra aranha, de tamanho bem menor.

        O olhar de Manyu Daury já tinha a tendência de vagar pelos cantos, exasperando qualquer interlocutor, e aquela aranha azul definitivamente capturava sua atenção enquanto o homem vestido de branco à sua frente tentava impressioná-lo com seu discurso – a aranha estava a um metro e meio de distância dele, calculou Manyu, se o resultado da hipotenusa estiver correto, pensou o rapaz.

        “Entende que você me deve a vida, certo...? Nós os salvamos da morte na mão dos zelotes. Digo nós porque eu sou o líder do grupo que o salvou, e digo que você deve a vida a mim, mais uma vez, porque eu sou o líder.”

        Manyu desfocou sua atenção na aranha, que já ia atingindo a teia, e voltou-a para o homem de branco, que sorria maquiavelicamente. “Isso quer dizer que agora você é meu líder... é isso?” O outro assentiu com ar condescendente.

        “Também quer dizer que faço parte do bando agora?” Distraído, quase fleumático, Manyu Daury não estava acostumado a sentir medo – quase nada quando os zelotes o atacaram, semanas atrás. Mas aquele homem o dava calafrios quando prolongava muito o fim de cada frase ou pergunta.

        “Er... não.” Em algum lugar da cripta, ouviram-se pigarros. Aquele canto estava iluminado por velas dispostas num padrão qualquer, no chão (por que no chão? perguntava-se Manyu), de modo que o outro extremo da extensa cripta estava preenchido de sombras, onde o jovem Daury sabia que ocultavam-se o bando de Lacernos.

        Lacernos era o homem de vestes brancas, que Manyu sabia apenas, até agora, ser líder de um bando de criminosos operante no Nomo das Torres. “Não. Você vai ser meu subordinado direto... vai trabalhar aqui.” A voz de Lacernos era ao mesmo tempo rude e afável.


        “Aqui...? E o que tem demais nessa cripta?” Manyu também sabia estar numa cripta no subterrâneo do Nomo das Torres; mas não sabia exatamente onde, havia sido vendado pelos seus salvadores... ou captores, não fazia mais diferença alguma.

        Também não fazia mais luz alguma, porque as velas haviam apagado de repente.


***

Uma enorme aranha de pelos azulados rastejava pela planície negra. Com mais de três metros de comprimento, uma daath podia ser cavalgada por alguém corajoso o suficiente para domá-la – ou seja, quase ninguém. Azif avistou a monstruosa figura movendo-se logo à frente, e agradeceu silenciosamente aos deuses da Terra Castanha por ela não tê-lo percebido.

        Euro vinha mais atrás e Azif fez-lhe um gesto para que parasse ali mesmo. O meio-neander reagiu com uma cara de enfado, fazendo Azif imaginar por que demônios o seu irmão estava comportando-se daquele jeito desde o princípio da missão.

        Teriam de esperar a aranha sair daquela seção do Ermo, para que pudessem passar. O Prodígio Negro concentrou-se e seu uniforme-paradoxo deformou-se sobre o rosto, criando lentes de metal escuro e resina de tom prateado. Um dos novos truques com conseguia fazer desde a semana em coma. Agora enxergava perfeitamente a aranha, mas perdia noção das coisas logo ao seu redor.

        E foi assim que não percebeu de imediato que Euro passara por ele investindo em grande velocidade, os pés praticamente não tocando o chão pedregoso daquela ravina por onde haviam vindo. E em instantes o Prodígio Amarelo já estava na faixa de planície negra, pronto para lutar contra a gigantesca aranha azul... a mortífera daath.




segunda-feira, 26 de setembro de 2011

NO PRINCÍPIO ERA O PARADOXO


Arthur Ferreira Jr.'. apresenta o Episódio Vinte da SAGA DOS PRODÍGIOS, o primeiro da terceira fase, TEOGONIA




AS CHAMAS DOMINAVAM O HORIZONTE E CHARYA pôde enxergar a Torre Vermelha, a Torre Azul, a prisão-elevada e outros edifícios da cidade serem consumidos por trás das muralhas. O que estou fazendo aqui? Deveria ter acordado junto com os outros.

        “Não se assuste, menina,” soou a voz vinda do topo de uma árvore solitária na pradaria onde Charya contemplava o incêndio. “Isto aqui são apenas os últimos instantes das suas próprias criações. No mundo desperto, apenas segundos de diferença.”

        “Minhas criações? E quem é você, afinal?” A mulher no topo da árvore segurava a cabeça do inimigo que os Prodígios haviam acabado de derrotar. Ela usava vestes sacerdotais leves, exibia a Marca da Mãe-Monstro no rosto e sorria condescendente. Charya lembrou-se que ela estava presente na batalha dentro de sua própria mente... e que não havia interferido.

        Pelo menos, não aparentemente.

        “Observe.” A mulher ficou em pé na árvore, sem precisar de nenhum apoio, e apontou para exércitos que atacavam a cidade em chamas. Logo a cidade se desfazia numa nuvem e consumia os soldados.

        A nuvem se aproximava das duas, paradas no meio do nada e da vegetação rasteira. A cabeça de Mordekai abriu os olhos e a boca, “Vai acontecer tudo de novo ou vocês serão diferentes?”

        Charya soube que aquilo era só o material que havia preenchido o espaço vazio de sua mente, dissolvendo, deixando o campo livre e branco para ser o que ela quisesse, se um dia ela aprendesse como dominar mais a própria mente. Mas mesmo assim entrou em quase pânico quando a nuvem se aproximou, milhares de milhões de fragmentos metálicos rodopiando pelo ar e turbilhonando num trovejar sem fim, formando figuras e vultos em meio à escuridão que sua sombra provocava.

        “Nada pessoal,” gritou a voz da mulher por sobre o rugido da nuvem, “se precisar conversar, me procure aqui.” E aquela massa de trevas e metal engolfou Charya, que pouco antes de perder os sentidos – ou seria melhor dizer acordar – enxergou a desconhecida e a cabeça que ela segurava desfazer-se em fragmentos de metal e cristal reluzente e juntar-se a milhões de vozes, trovões, imagens, ícones, figuras, rostos, cheiros de óleo e sal, éter e carne podre, medos, desejos, conhecimento e esquecimento concentrados numa nuvem viva.

        Nada pessoal, nada pessoal, Charya acordou com a frase pulsando e repetindo no fundo da mente.

***



E de fato a frase a perseguiu até mesmo no dia seguinte, quando os cinco Prodígios saíam para sua primeira missão.

        O Ermo da Condenação começava a diminuir seu caráter agreste – o que tornava claro que eles estavam se aproximando das fronteiras da Terra Castanha. Haviam atravessado uma boa faixa de lodo cheio de húmus – Dova percebia a presença nítida das trufas logo abaixo da primeira camada de sedimentos, mas não estavam ali para catar trufas.

        Paradoxalmente, pensou Dova, porque eu fui “contratada” pra isso, não? Resgatada da prisão-elevada pra farejar trufas do Ermo. E ao invés disso, vou andando no meio desse nada com mais quatro pessoas que vestem o mesmo traje vivo que eu. Um de cada cor. E seria tudo mais estranho se o Grão-Mestre não tivesse contado aquelas coisas na noite de ontem.

        Berya andava logo ao lado de Dova e comentou em voz baixa, “Insuportável, não é?”

        “O que é insuportável? Seu uniforme-paradoxo tá coçando ou algo assim? ”

        “Não,” a garota mais alta respondeu, “a umidade das trufas mexe comigo. Eu as sinto lá embaixo, vivas. Quero sair daqui logo.”

        “É só isso mesmo? Você não parece muito bem... desde que acordou notei em você um ar de cansada. Apesar de não te conhecer antes das duas batalhas... nelas você não tinha essa expressão. É difícil não ter como voltar pra casa de seus pais, não é?”

        “Not exactly,” Berya respondeu no dialeto antigo que aprendeu no harém dos Mordekai, “eu vi meu pai morrer duas vezes, e nas duas eu me vi responsável por tudo. Agora eu sei que o Alienígena estava me controlando, e que eu não tenho culpa; e sei que na segunda vez, aquela coisa tinha só a aparência de meu pai. Mas a questão é que eu nunca gostei de meu pai de verdade, e só percebo isso agora. Mesmo quando não sabia que ele me pôs condicionada, a vida inteira com uma coleira dentro da cabeça, eu já sabia que ele não prestava: só não podia reagir.”

        “Eu não me dava muito bem com minha família, também. Só meu avô me entendia direito. Mas sinto falta da fazenda na fronteira, da vida em família... mesmo que vários da família não me fossem muito simpáticos, sabe?”

        “Você era uma dalai tsu como os outros que foram mortos, Dova-zula? Sabe, meu pai não teve nada a ver com aquele massacre. Foram os ortodoxos que te capturaram.”



Muito bem, Prodígios,” interrompeu a voz de Charya, soando direto nas mentes de todos, “Azif deu sinal de que já enxerga a Torre Azul. Preparem-se, porque talvez a cidade esteja sofrendo um cerco e seja difícil passar pelos zelotes.

        “Sabe que eu duvido disso, não é, Charya?” A mente da Prodígio Vermelha funcionava como uma estação repetidora, permitindo que todos os cinco conversassem se estivessem perto o suficiente dela. Azif era o batedor, mas estava próximo o bastante para conseguir entrar em contato e reclamar, “Da última vez que estive aqui, era uma guerra civil desorganizada, e ainda não deu tempo de tropas de outros nomos chegarem por aqui.

        “De qualquer forma, vamos ter cautela. Euro, vai mais adiantado pra dar cobertura a Azif.

        O meio-neander olhou para trás – para as duas garotas que estavam até poucos instantes conversando, e mais diretamente para Berya – e, virando a cabeça de volta, avançou marchando, aproveitando que o terreno não era mais lamacento.

        “Então você não se lembra mesmo de ter destruído ou não a tearcubadeira que seu pai montou, Berya? Eu posso ajudar você a lembrar, isso nos pouparia tempo. Porque se não destruiu, é quase certo que ela foi roubada da Torre Azul.

        A Prodígio Azul respondeu em voz alta, fora do canal telepático: “Desculpe, Charya-zula, mas prefiro que ninguém mexa com minha cabeça agora. Pode dar mais trabalho assim, porém é mais seguro. Sério.”

        “Calma, foi só uma sugestão e não uma ordem.” Charya fechou o canal telepático e pensou consigo, nem eu mesma tenho certeza se ia conseguir o que sugeri. Eu não consigo acessar minhas próprias memórias, afinal de contas. Mas não posso parecer fraca demais. O Grão-Mestre me colocou como líder de campo dos Prodígios, esta é a nossa primeira missão e eu quero fazer de tudo pra não decepcionar ninguém. Recuperar a tearcubadeira da Torre Azul. Tirar a capacidade de gerar uniformes-paradoxo das mãos de qualquer sacerdote da Terra Castanha – ortodoxo ou herege.

        Hum. Me irrita um pouco esse hábito dela de nos tratar formalmente. Zul, zula. Tratamento típico dado a gente de fora da própria Família, na Terra Castanha.

        Oh, uma nuvem de fumaça no horizonte. Incêndio na cidade...? Não foi justamente de um incêndio que o Grão-Mestre mencionou em sua história?

        Só coincidência, não pode ser um sinal...




***





DO RELATO DO GRÃO-MESTRE FÍDIAS BENDANTE:

Numa era anterior, o mundo conhecido se dividia entre duas grandes potências, duas grandes nações, e havia uma grande máquina numa cidade – uma máquina que podia transportar as pessoas para qualquer lugar do mundo, muito além do que você pode fazer agora, Azif. Essa máquina não funcionava direito e era uma relíquia de eras ainda mais remotas; mas era cobiçada, por alguma razão, por pessoas da nação oposta à da cidade.

        Naquela época, a humanidade estava se recuperando de uma praga que causava o esquecimento – todos, ou quase todos, eram como Charya... e o retorno da capacidade de lembrar trouxe consigo poderes incríveis. Um potencial imenso caía nas mãos dos homens, prodígios que vocês mesmos podem realizar, prodígios que vocês SÃO.

        Os humanos da nação que impôs o cerco a essa cidade – vamos chamá-la de Shamballa, assim a chamam em certos registros antigos – tinham o Povo Neander como prisioneiro, e grandes guerreiros e guerreiras do povo foram lançados no esforço de guerra contra Shamballa. Entre estes haviam cinco, que são importantes nesta história que conto agora.

        Um homem dessa nação invasora dotara um esquadrão especial de cinco neander, três homens e duas mulheres, com os primeiros uniformes-paradoxos conhecidos. O que reza a lenda é que ele sabia o que estava fazendo: não criando uma arma de guerra para sua nação, Aggartha, mas libertando todo o Povo Neander. Depois de praticamente incinerar a cidade para tomar a máquina de teleporte, o esquadrão assumiu o controle de Shamballa e voltou-se contra Aggartha. Os líderes humanos das duas nações tinham grandes poderes como os de vocês, mas os uniformes ampliaram tremendamente as capacidades dos neander – não só do esquadrão como do Povo Neander inteiro.

        Apesar dos poderes novos descobertos e das incríveis armas do passado redescobertas, essa guerra só fez desfazer as duas nações em várias outras menores e gerar zonas arrasadas... como o Ermo da Condenação.

        Com o tempo, o Povo se refugiou nas cavernas subterrâneas que um dia fizeram parte do Império de Aggartha, e cada bebê nascido desde esta época era unido a um uniforme-paradoxo. Os paradoxos aceitavam – e aceitam – os neander com muito mais facilidade do que um humano como eu. O Povo Neander e o Paradoxo tornaram-se uma só espécie. O Paradoxo estruturou a cultura, a tecnologia e até os ritos de acasalamento dos neander – enquanto em uma pessoa como eu, um uniforme se alimenta de certos fluidos vitais, de certas energias, que me impediriam de ter filhos... nos neander essa ligação é suspensa em determinadas épocas do ano, e na prática é como se eles entrassem num cio, acasalassem e voltassem ao normal estéril depois da concepção.

        Uma mulher do Povo, quando grávida, é afetada pelo uniforme-paradoxo que ela veste, e o bebê já nasce com uma semente do Paradoxo em si, que cresce com o tempo, ajustado a ele. Vocês viram um processo parecido acontecer em Dova, vindo do uniforme de Euro, só que muito mais acelerado. Como o próprio Euro não nasceu de uma neander e sim de uma humana-padrão... a mesma mulher que deu a luz a você, Azif, e a você, Berya... o meu filho adotivo aqui não foi preparado para o Paradoxo e correria risco de vida se tentasse se unir a um uniforme.

        O Incêndio de Shamballa marcou o fim de uma era e o início de outra. Os poderes incríveis foram amainando, encontrados cada vez mais apenas em certas linhagens, e as armas estupendas foram ocultas por governantes paranoicos, mantidas nas mãos das elites. Mas se o que foi passado de boca a boca na minha Família for certo, começamos agora uma nova era: a Era dos Prodígios.






BAIXE A COMPILAÇÃO 
DAS PRIMEIRAS FASES:


CONVERGÊNCIA (Episódios 1 a 9)
E
REVOLUÇÃO (Episódios 10 a 19)


domingo, 25 de setembro de 2011

ALÉM DA TORRE VERMELHA

Arthur Ferreira Jr.'. acha que o Episódio Dezenove fala por si mesmo.
E com ele a SAGA DOS PRODÍGIOS chega ao final do segundo arco de histórias: REVOLUÇÃO

PRODÍGIOS! VAMOS RESOLVER ISSO E IR PRA CASA! O pulso telepático de Charya se fez ouvir na mente de Azif, Berya, Dova e Euro, e a Prodígio Vermelha ergueu a katana dupla e começou a girá-la por sobre a cabeça. A nanoconsciência com a forma do Alto Sacerdote Mordekai arregalou os olhos ao perceber que estava tudo perdido. Azif notou que a outra nanoconsciência – a que assumira a forma da Matriarca Kashramael – casualmente encostou-se na parede do salão, braços cruzados e sorridente, como se para assistir um espetáculo.

        Azif... a voz de Charya quase dominava a mente do Prodígio Negro com tamanha força e presença, e o rapaz sentia o amor que ambos sentiam um pelo outro, cada um à sua maneira. Agora, como da última vez! Me lance pelo ar!

        A segurança naquela voz telepática deixava claro que ali eles podiam ir além de seus limites – e Azif limitou-se a brandir sua cimitarra negra na direção de Charya, contrariando toda a fadiga que o exauria. A katana dupla girou mais forte e a Prodígio Vermelha sumiu naquele ponto num estrondo, ressurgindo por trás do Alienígena que havia reassumido parte de sua forma original e atacava Dova, estrangulando-a com seus tentáculos. Depois do teleporte, as lâminas pareciam cortar o próprio espaço. Como um ciclone, Charya girou a espada de dois gumes por sobre a matéria ectoplásmica do monstro, fazendo jorrar parte de sua substância viscosa e algo que parecia sangue sobre Dova, Euro e o falso sacerdote Mordekai. Os tentáculos afrouxaram o aperto e Dova se viu livre de novo, respirando fundo e recobrando a sanidade que havia sumido em parte durante toda aquela aventura.

        A menina soube então que era a fúria de Charya presa na forma da katana que havia empunhado aquele tempo todo. Eu sou uma catalisadora, lembrou Dova, e repetiu mentalmente a litania que seu avô Nehru havia lhe ensinado. Eu me conecto. Eu aprimoro. Eu absorvo. Eu curo.





       Euro olhou para Charya enquanto manietava o falso Mordekai, que resistia bravamente, e lhe ocorreu, letheana transcendente, ela poderia simplesmente escolher acordar agora e encerrar tudo mas prefere nos unir na batalha – é como um simples treinamento, ou essa coisa com o rosto do Alto Sacerdote é responsável por este falso mundo e ela está disputando pelo controle mesmo agora? Este pensamento fez Euro redobrar os esforços em manter Mordekai preso. Tentava lhe aplicar um mata-leão mas o duplo saía-se muito bem resistindo a suas manobras.

        Berya fitou fixamente a figura com a forma de sua mãe, que encostada na parede esperava o desfecho da batalha. “Você é a deusa? A Mãe-Monstro?”

        “Devia dar atenção aos seus amigos,” o duplo respondeu com um tom de sarcasmo. “Mas pode-se dizer que sim, sou a Mãe-Monstro, apesar de ser uma entre muitas. Meu nascimento não foi finito, foi infinito, assim diz o Manifesto da Mãe-Monstro. Eu sou uma imagem... e fui programada por sua mãe.”

        “Então o outro...”

        “Inferior, programado por seu pai para suprimir sua rebeldia. E permaneceu com você, dentro do corpo e da mente, mesmo quando foi possuída por aquela criatura. E como seu pai, ele serve àquela coisa. Ia deixar vocês presos aqui para sempre... e Charya em coma.”

        “A criatura está aqui mesmo? Como eu e você?”

        “É só uma projeção da vontade desses novos deuses usurpadores, e está se desfazendo agora graças a Charya. Vai lhe fazer bem se voltar à antiga Fé, minha filha. Pense como uma proteção extra.” E sorriu insinuante, exatamente como a Mãe-Monstro sorria nas antigas esculturas.



        Azif conseguia ouvir este diálogo enquanto corria na direção do falso Mordekai, pensando, talvez Charya tenha unido a mente de todos nós. Se for assim... devemos destruir juntos o verdadeiro inimigo. A cimitarra negra penetrou fundo o corpo do duplo, que não conseguia se mexer direito enquanto lutava contra Euro.

        Dova percebeu que o resquício do Alienígena que havia infiltrado a mente de Charya na batalha do labirinto-penhasco foi se desfazendo como um camaleão-do-meio-dia atingido por Euro. Àquela curta distância, a Prodígio Branca conseguia ouvir a vibração da espada dupla de Charya que havia cortado Alienígena e o próprio espaço ilusório ao redor dele – um perfeito golpe mental. Vendo Azif brandir a cimitarra contra o Alto Sacerdote, Dova notou que o cansaço no rosto de seu amigo se desfazia ao chegar tão perto dela. Sou mesmo uma catalisadora, meu avô estava certo. Com um salto a garota se pôs do lado de Azif e Euro, sua mão esquerda esticada para tocar o ombro do Prodígio Amarelo.

        Berya voltou-se para a batalha e com um gesto duplo, as duas espadas curtas voltaram às suas mãos. É incrível, pensou a Prodígio Azul, todos nós cinco somos paranormais, não só a telepata. E a menina de branco catalisa e aumenta os poderes de todos nós, e mais ainda porque todos usamos uniforme-paradoxo. Deu alguns passos na direção do centro do salão. Percebo com toda clareza meu potencial agora... não apenas farejar trufas, mas dominar o fogo-fátuo do Ermo e a própria energia que define essa maldita duplicata de meu pai... Berya franziu a testa e segurou com mais força as bainhas de suas armadoxos. Eu leio os padrões nesse duplo e leio até como ele define o que estou fazendo com ele: eletrocinese.


        Enquanto eu provoco falhas na estrutura dessa... nanoconsciência... eu roubo os dados que a compõem... antes que Euro a destrua completamente... A Prodígio Azul cruzava as lâminas das espadas como se as amolasse ou cobiçasse um prato que ia ser posto na mesa.

        Euro sentiu um leve calor percorrer seu corpo e sua confiança ser redobrada. Vamos, Euro! A telepatia de Charya soou em sua mente. Deixe que Dova o faça ultrapassar todos os limites... o meio-neander sentiu que a força de suas mãos não era apenas força física mas uma imposição da mente sobre a matéria. Telecinésia tátil, pensou Berya enquanto absorvia o conhecimento do falso Mordekai.

        A azul pouco a pouco fragmentava o impostor em pedacinhos. O negro vibrava sua lâmina dentro dele, despedaçando o espaço que o definia. A branca fazia sua parte retirando as limitações do negro e do amarelo e aprimorando os poderes de todos. A vermelha emitiu mais um comando telepático, dando uma confiança ainda maior ao amarelo e os dois, num só movimento sincronizado, fizeram a cabeça do falso sacerdote rolar com um golpe decapitador e seu corpo explodir por dentro com telecinese.



        A cabeça quicou e foi rodando pelo chão até os pés da Kashramael-simulada. E antes que Berya ou os outros pudessem recobrar o foco e fazer alguma coisa, ela se abaixou, segurou a cabeça degolada e disse antes de desaparecer, “Baibai, filhotes.”

        A cena foi desvanecendo e a visão de todos os cinco foi se tornando turva – até mesmo a de Charya, que não resistiu e... acordou num colchão improvisado do novo acampamento nas cavernas dos contrabandistas.

        Anisha, a mãe adotiva de Euro e Azif, esposa do Grão-Mestre, passava um pano úmido em sua testa quando os olhos da Prodígio Vermelha se arregalaram – o que fez com que a mulher espantada gritasse por seu marido e pelos outros.

        Ao redor dela, outros quatro colchões, dois de cada lado, com os outros Prodígios despertando aos poucos. O Grão-Mestre Bendante veio correndo afobado e se postou diante deles, o sorriso aflito desenhado no rosto envelhecido:

        “É mesmo um Prodígio que estejam vivos! Uma semana desacordados e só vivendo de água e da energia reciclada pelos uniformes.”

        Dova espreguiçou-se e foi a primeira a tentar levantar, notando que era verdade, não haviam lhe tirado o uniforme-paradoxo. E ele – bem como os outros quatro – havia 'voltado ao normal', sem desenhos estranhos ou decotes insinuantes. Passou os dedos no ombro e comentou, ressabiada, enquanto os outros esfregavam os olhos, “A gente nunca tira essas roupas?”

        “Hum, precisamos mesmo conversar. E todos nós, não só você e eu, Dova.” O velho Bendante passou os olhos em sua tropa e pediu, “Antes que façam qualquer pergunta, vou lhes contar uma história. Não quero ser interrompido enquanto não a terminar... pode ser?”


O RETORNO DA RAINHA

O Capítulo Dezoito da SAGA DOS PRODÍGIOS surpreendeu até ao autor Arthur Ferreira Jr.'.



Prazer em conhecer
Espero que adivinhe meu nome
Oh, sim, pois o que os confunde
É a natureza do meu jogo

Cântico da Simpatia, de um culto dalai tsu à Avalanche



NO CENTRO DO SALÃO DE MÁRMORE RUBRO, um homem de vestes sacerdotais púrpuras sorria para os três Prodígios enquanto tocava a coxa de uma garota pendurada por correntes do teto, trajando um uniforme-paradoxo vermelho. Entre esta figura – Azif a identificou de pronto como o Alto Sacerdote Judaas Mordekai, ou um simulacro da mesma espécie do irmão de Dova – e os três invasores estava a Soberana Berya, as duas mãos erguidas na direção de Dova, que se contorcia no chão com o choque elétrico provocado pelo fogo-fátuo.

        Dessa vez o fogo-fátuo não parece muito a nosso favor, pensou Azif fascinado. Demônios do Ermo, como ela é bonita... mas é minha irmã. Enquanto Euro aparecia na porta para ajudar Dova, Berya ergueu as mãos em gestos precisos e solenes, declarando numa voz autoritária: “Pela honra da Terra Castanha...!”

        Os véus que lhe cobriam o corpo azulado pareceram obedecer a uma compulsão mágica, pois se dissolveram como névoa sobre a pele de Berya e se reformularam como um tipo de exoesqueleto macabro, vagamente biomecânico, acentuando a aparência já alienígena da Soberana. Seu cabelo longo e azul se movia como se houvesse vento forte no salão, e as laterais de seu rosto se cobriram da mesma casca resiliente que lhe protegia o corpo. Toda essa transformação levou pouco mais de dois segundos para acontecer. Os olhos brilhavam com um azul sobre azul, sem distinção de pupila.

        Azif não sabia bem o que dizer e tentou argumentar, “Nós só estamos aqui para ver Charya, não queremos machucá-los...” O olhar que Berya lhe retornou era indiferente e frio. Era como se estivesse em transe. Ela o respondeu sacando do exoesqueleto azul-quase-negro que cobria seus braços, duas espadas curtas de metal também azul, só que de outro tom, leve e reluzente – era a primeira vez que Azif via alguém manifestar dois armadoxos de uma só vez. É um pesadelo, e eu quero acordar, gemia no fundo de sua mente.

        Dova abriu os olhos meio atordoada e viu a situação toda num átimo. Alguma coisa dentro de si – mais forte que suas intuições, mais forte que o sussurrar de seu uniforme-paradoxo – a moveu para a frente, e ela sabia que era o único ato certo a fazer: deu um chute preciso no meio das costas de Azif, tirando seu fôlego e fazendo-o cuspir um jato de cristal como aquele que havia antes se desprendido no lodaçal... a nuvem de cristal anão que se formava rodopiou e distraiu Berya, e isso foi a deixa para Euro investir correndo sobre o sacerdote Mordekai.



        Berya tentou ignorar a nuvem e atacar Azif e Dova com suas espadas, mas o próprio cristal a impediu – assumiu uma forma feminina, a mesma que mais cedo Azif havia confundido com sua mãe, Kashramael. “E então, menina? Vai ferir sua própria mãe?”

        Enquanto isso Dova se arremessava por cima do campo de batalha que o salão da Torre havia se tornado, empunhando báculo e katana na ânsia de ajudar Euro a derrotar Mordekai, que havia recebido um soco poderosíssimo no rosto, sem piscar. “Não sou tão frágil quanto vocês imaginam – e que ótimo, a garotinha veio trazer a espada da Adversária para mim...”

        Azif estremeceu ao ver a figura de cristal sair de dentro de si e assumir de novo aquela forma, mas sua surpresa paralisante durou pouco.  Teleportou-se para trás de Berya e pôs a cimitarra em seu pescoço, “Renda-se, eu já disse, não quero ter que te machucar, irmã... ”Falo a verdade, pensou Azif entrando numa espécie de desespero, mesmo sendo aqui só um sonho muito real.

        “Esta não é minha mãe, mortal.” Mortal? Ela pensa que é uma deusa?

        “Exatamente, filha. Você não é sábia e onisciente? Então,” interrompeu a criatura com a forma de Kashramael, sorrindo e exibindo dentes afiados, “use sua visão profunda e enxergue o que eu sou – o que todos nós somos!”

        Uma semente de dúvida brotou na mente rígida de Berya e ela fez o que a coisa pedia. Sua percepção se expandiu, tocando toda a Torre Vermelha... e a presença próxima dos outros quatro estimulou algo que ela não tinha experimentado antes: toda a área ao seu redor era branca, um nada informe, uma aparência ilusória... e só ela e os outro três Prodígios eram reais. Até mesmo os guardas mortos nos corredores não passavam de decoração... exceto duas criaturas cristalinas que enxameavam assumindo formas humanas, a forma de sua mãe diante de si e a forma de seu pai lutando contra Euro e Dova. O padrão dos cristais era o mesmo dos ídolos de cristal anão que ela guardava em um nicho na Torre Azul, durante sua infância. Restos de uma era anterior, depósitos de informação, objetos de veneração – os cristais anões também eram usados pela elite da Terra Castanha para condicionar os jovens mais problemáticos de sua própria casta. Aquilo se tornou evidente às percepções profundas de Berya. Era como brincar com fogo, porque aqueles dois cristais haviam assumido vida própria, mas ela ainda não saiba o porquê.

        Dova ergueu a katana de Charya e percebeu que havia cometido um erro – ao saltar ansiosa para combater o Alto Sacerdote, não havia deixado uma mão livre para fazer o gesto de bênção e liberar a Prodígio Vermelha de seu sono forçado. Mas percebeu que podia usar a espada para dispersar Mordekai em pedacinhos como havia feito com a falsa Kashramael – os dois pareciam ser feitos da mesma substância, distinta tanto da dos zelotes derrotados quanto da substância dela, de Euro, Azif e Berya. Apenas não conseguiu fazer isso, porque Mordekai vibrou um golpe de mãos nuas sobre o pulso de Dova, desarmando-a e fazendo a katana cair longe, quase aos pés de Berya e Azif.

        “Filha!” gritou o falso sacerdote enquanto tentava se desvencilhar de Euro que o tentava imobilizar, “Eletrocute esse desgraçado e pegue a espada!”

        “Não...” Berya jogou as próprias espadas longe e Azif imediatamente retirou sua cimitarra do pescoço da irmã. A Kashramael-simulada deu três passos para trás como se quisesse assistir melhor a cena, ainda sorrindo, divertida.

        Dova aproveitou que Euro deixava o sacerdote ocupado e usou sua mão livre para tocar o corpo da Adversária – parte da sua raiva havia se esvaído ao ser desarmada, Charya deveria acordar naquele instante e tudo estaria acabado, o sonho teria um fim.

        Mas não foi isto que aconteceu.



        A Adversária abriu os olhos e Berya imediatamente sentiu que aquela massa inerte com a forma de Charya despertava e diferenciava-se da massa branca e ilusória, era na verdade – Berya sentia isso com sua segunda visão profunda – um rodopio multicolorido, como a aurora boreal do Ermo. Como o Alienígena que a havia possuído, ela agora lembrava. Algo está faltando, algo está faltando, alguém... E lembrando tentou um ato inesperado – estendeu a mão para a espada e ela veio para suas mãos, por um instante parecia que empunharia a katana de Charya numa batalha mítica contra o Alienígena e a criatura cristalina que havia assumido ali a forma de seu pai...

        Mais uma vez, não foi isto que aconteceu.

        A Adversária atacou Dova estendendo tentáculos cor de aurora que saíam do corpo idêntico ao de Charya, os olhos multicoloridos como Dova havia presenciado em Berya na batalha no labirinto-penhasco. Euro se engalfinhava com o sacerdote que parecia muito mais forte do que sua forma franzina aparentava. Azif avaliava a situação e preparou-se para teleportar para o lado da Adversária e defender Dova.

        Berya partiu a katana com as duas mãos – parecia mais fácil do que quebrar a casca de um ovo – e o ar diante da Prodígio Azul se distorceu, dando lugar a uma garota de cerca de seus dezessete anos, cabelos loiros presos num rabo de cavalo, olhos atentos e boca carnuda, envergando um uniforme-paradoxo vermelho – quase uma armadura feita de casca de crustáceo perfeitamente adaptada aos contornos de seu corpo, cheia de espinhos rubros – e uma espada de dois gumes nas mãos, na verdade uma katana de dois gumes.

        Charya, a Prodígio Vermelha.




sábado, 24 de setembro de 2011

A RAINHA DE ESPADAS

Arthur Ferreira Jr.'. orgulhosamente (nem tanto) apresenta o Capítulo Dezessete da SAGA DOS PRODÍGIOS



Estou com sorte.
- Mantra dos devotos do Grande Goog



O RELÂMPAGO SUAVE E O TROVÃO PERSISTENTE enchiam a paisagem de som e fúria. Natural, pensava Azif enquanto Euro pilotava a biga planadora de volta ao Nomo das Torres,Charya sempre gostou das histórias desses espíritos do Ermo. Se estamos mesmo na mente dela... nada mais natural que eles apareçam com tanta força quando finalmente descobrimos o que está acontecendo.

        Se é que é esta mesmo a verdade. Há algumas pontas soltas. Euro parece meio envergonhado de falar do seu tempo com Berya... se é que houve algum tempo e tudo não passou de memórias falsas. E isto de memórias falsas deve atormentar meu irmão ainda mais: deve achar que falhou no retrospectar por ser meio-neander.

        E Dova. Ela parece tão bela à luz dos relâmpagos que cruzam a noite. E apesar do pouco tempo que a conheço, nunca me pareceu tão perigosa.

        “Estas algemas me incomodam.” A voz de Dova se fez ouvir sobre o ruído dos trovões e a propulsão da biga.

        “Não há outro jeito,” fez Euro. “E deem graças que não será uma entrada triunfante, o povo não costuma ficar nas ruas com uma chuva destas.”

        “Definitivamente não gostaria de ser exposta como um troféu de caça.” Lábios crispados, os olhos de Dova fitavam a Torre Vermelha, visível do lado de fora da cidade. Era uma estrutura cheia de janelas de vitral multicolorido, com paredes de cor rubra. Seu formato era hexagonal, quando visto de cima. Mas poucos a viam de cima – a Nomo das Torres não era conhecido pelas máquinas voadoras que eram às vezes vistas em outros nomos. A biga planadora era praticamente a única máquina ancestral usada ali.

        E, naquele sonho estranhamente coeso, dentro da mente de Charya, isso continuava sendo verdade. Euro amaldiçoou este fato, internamente, porque poderiam ir direto ao topo da Torre se tivessem equipamento melhor. Ele queria se livrar da situação o mais rápido possível. Agora que estava livre de sua ilusão de poder – ou achava que estava livre – a irrealidade daquele sonho, oculta logo abaixo da superfície de suas percepções, o irritava bastante.

        Teve até vontade de fazer a biga espatifar-se contra as muralhas da cidade, acabar com tudo – mas até aí sua percepção alterada o impedia, porque ele tinha a nítida impressão de que fazê-lo ia interromper o sonho e recomeçá-lo de novo, com ele, Euro, no lugar de um herói popular admirado e invejado por todos da Terra Castanha e do povo neander.

        Talvez isso já tenha acontecido antes, pensou o Prodígio Amarelo. Mas eu não vou deixar que dê tudo errado de novo... se é que deu errado antes. Malditas dúvidas.

        Pousada a biga, Euro escoltou os dois em direção ao palácio da Soberana... haviam poucas pessoas na rua, e quando pensou não estar sendo observado, desviou o caminho para a Torre Vermelha.

        “Como eu pensava,” sussurrou Dova. “Todas as pessoas que passamos perto me pareceram iguais às paredes da muralha, ao mato em volta da estrada...” Por dentro, Dova sentia ganas de esmagar aquelas pessoas como fizera com seu falso irmão.

        Chegaram diante de um arco de entrada para a parte pública da Torre Vermelha. No terceiro andar, sabia Euro, estava o corpo da Adversária. Azif reparou que os tijolos que compunham o exterior daquele edifício tinham quase a mesma tonalidade do uniforme de Charya – e ele sabia que, no mundo real, era diferente, o prédio estava em mau estado e aquele rubro era quase um negro coagulado. Dova sentiu raiva dos tijolos do prédio tanto quanto do grupo de sete zelotes postado à entrada.


        “Que surpresa, senhor.” O zelota de baixo escalão sorria como se soubesse demais. “Veio investigar de novo?”

        “Quero interrogar estes prisioneiros diante da Adversária. Eles terão de confrontar seu crime... tenho certeza que lá confessarão.”

        Parece uma ideia idiota, pensou Azif. Mas vamos ver. Foram entrando pelo arco e parecia que tudo ia correr bem, até Dova desferir um chute contra o zelote mais próximo de si.

        “Ficou doida?!?” gritava Azif enquanto os outros zelotes sacavam suas armachoques. Euro assumiu postura de batalha, e as joias em seu corpo reagiram, enxameando e formando a armadura de placas que era agora seu uniforme-paradoxo. “Ele já estava sacando a armachoque!” bradou Dova enquanto se soltava das algemas propositalmente frouxas.

        “Bom,” exclamou Euro enquanto quebrava a mandíbula de um dos zelotes, “pelo menos não preciso me conter contra estes vermes. Nunca gostei de zelotes mesmo.”

        Azif não conseguiu se esquivar da descarga de uma armachoque (Nem sempre este teleporte funciona, e ele parece consumir minha energia interna... melhor maneirar, pensou o Prodígio Negro) mas retaliou o ataque com um golpe de cimitarra, parte da eletricidade voltando para o zelote que o atacou, através da lâmina.

        Quem diria que eu poderia sobreviver a uma armachoque, Dova não deixou de notar enquanto materializava seu báculo e aparava a descarga de dois zelotes ao mesmo tempo. Um terceiro sacou duas espadas e preparou-se para atacar a Prodígio Branca, mas Euro o conteve com um tremendo soco no estômago, fazendo o zelote perder o fôlego e largar as espadas pelo chão.



        “Ah! Dane-se!” Azif zumbiu pelo átrio da Torre Vermelha, golpeando com precisão os últimos três zelotes pelas costas, o sangue jorrando sobre Dova e Euro. O ruído de um alarme começou a soar pela estrutura da Torre. “Temos que subir! Senão isso aqui vai ficar coalhado de gente, e pode ser que até mesmo a gente possa morrer de verdade aqui!”

        “Nunca se sabe,” comentou Dova enquanto chutava a cabeça de um dos zelotes caídos. Azif balançou a cabeça em reprovação e continuou, “Vamos, Euro, seja nosso guia.”

        “Alguém deve tê-los avisado de alguma coisa... talvez o Alto Sacerdote.”

        “Talvez Berya,” sorriu Dova para Euro. O meio-neander ia retrucar alguma coisa, mas notou que era um sorriso amargo – irônico. Melhor rir do que chorar, pensou Euro, e apontou um dos corredores laterais:

        “Acho que consigo nos desviar das patrulhas se formos por ali. Tomamos um pouco mais de tempo, mas é mais seguro.”

        “Sinceramente,” Dova rodou o báculo numa mão e estendeu a outra para que Azif lhe passasse a katana de Charya, “eu não me importo nem um pouquinho de esmagar estes zelotes falsos – eles me dão nojo, quase tanto quanto um zelote de verdade.”

        “Por que quer isto de volta?” Azif perguntou segurando mais firme no cabo das duas espadas.

        “Gente, estamos perdendo tempo...” Euro começou a se irritar. “Azif, dê logo a katana se é o que ela quer – não é sua mesmo.” Virou-se para Dova, “Vamos fazer sua vontade então, vamos pelo caminho mais rápido. Mas depois não nos culpe se isto aqui virar um pesadelo.”


        ***


“Não sei se isso é um pesadelo, parece mais um sonho erótico.” Dova esmagou a cabeça de um zelote e rasgou a garganta de outro com um golpe de katana, girando elegante enquanto se deslocava em meio à multidão de guardas.



      “Será possível que está tendo prazer nisso?” Azif zuniu pela rampa entre o segundo e o terceiro andar, derrubando vários zelotes. Por dentro se sentia exausto, mas algo ainda o dava forças e renovava seus ataques.

        “Fácil demais,” murmurou Euro depois de rodar os punhos ao redor enquanto aparava descargas de armachoque e, com mais um giro, atingia os zelotes armados como se fossem pinos de boliche.

        “Depois vamos conversar, Dova.” Azif retirou a cimitarra do corpo do último zelote naquele setor. A mocinha arfava, suada, suja de sangue e tremendo com as duas armadoxos na mão.

        “Não tente me dar sermão! Nem agora nem nunca!” Azif se surpreendeu com o tom de voz que lhe parecia familiar demais, mas cortou a discussão que ameaçava iniciar, “Que seja, vamos, por aquela porta abaulada.”

        “Eu não vou negar que as mortes deles...” comentou Euro baixinho enquanto andavam alertas pelo corredor seguinte, “... parecem, não sei, justas.”

        Azif limitou-se a suspirar, mas a máscara de gás que agora cobria seu rosto transformava o suspiro num chiado rouco. Apontou para uma porta no final do corredor e sussurrou, “Aquela, Euro?”

        “Essa mesma, a última do corredor depois da rampa...”

        Dova se adiantou e correu para abrir a porta. Azif seguiu logo atrás para tentar impedi-la de talvez ser eletrocutada por algum dispositivo de segurança ativado durante o alarme, mas o cansaço acumulado pelas batalhas o tornou menos rápido que o necessário – e ele viu, como esperava, Dova ser fulminada por uma rajada elétrica.

        Mas não vinha de nenhum dispositivo arcano e sim de dentro do salão que Dova havia aberto a porta: uma garota vestindo apenas véus que ocultavam sua pele azul tatuada fez outro gesto de arremesso e o fogo-fátuo elétrico foi na direção de Azif... que conseguiu se esquivar rolando para dentro do salão, diante de sua meia-irmã Berya, a Soberana das Torres.