domingo, 12 de agosto de 2012

DE VOLTA À TORRE AZUL


O Episódio 27 surge após tantos meses de espera...




O CINTILAR TRANSLÚCIDO DO FOGO AZUL quase ofuscou as retinas de Euro, mas ele continuava olhando. Não se cansava de admirar o artifício engenhoso da meio-irmã. Berya segurava o pequeno cubo de cristal anão na palma da mão esquerda, e com a direita, manifestava um facho de fogo azul, lançando labaredas que estavam entre o fulgor de uma chama e a fagulha de uma armachoque, e que perturbavam a consciência do kobold.

Era um kobold menor, encerrado num cubo bastante reduzido, e de potencial ainda mais reduzido; mas deveria dar as informações que os Prodígios queriam. Lá fora – fora da Torre Azul – a cidade estava semideserta, e Azif fizera questão de evitar os poucos que ainda vagavam pelas ruas, tinha certeza de que seriam perigosos, coisa que Euro e Charya concordaram de imediato. E ali estavam, após esquadrinharem aposento após aposento, encontrando tudo devastado.

O meio-neander, ao contrário dos outros três Prodígios, tinha uma noção mais nítida do que Berya fazia ao cubo cristalino – aquele objeto mínimo era bastante similar a certos itens do povo neander, que estavam na fronteira entre objeto e animal de estimação. Tinham um mínimo de autoconsciência e Euro também sabia que seu uniforme-paradoxo estava permeado de fragmentos de cristais como aquele, embora ainda menores. E o fogo azul às vezes irrompia em certos locais das cavernálias de seu povo, assim como em certos descampados do Ermo. O estímulo daquele fogo fazia os cristais falarem – falarem na mente daqueles próximos, como se compartilhassem do dom de Charya. Expondo o cubo ao clarão do fogo azul, Berya esperava conseguir mais pistas do que havia acontecido ali.

Até agora tem se mostrado impassível, pensou Euro. Ela foi responsável pela morte de vários cadáveres que estão largados pela Torre. Sentiu quase um calafrio ao lembrar-se do rosto imperturbável de Berya quando encontraram o corpo do pai dela, Judaas Mordekai – rasgado por duas espadas gêmeas, e queimado pelo fogo azul. Mas é impossível que seja responsável por toda a mortandade... e a tearcuba de Mordekai não está mais aqui. Euro não tinha ideia do que, exatamente, aquela tearcubadeira poderia fazer – gerar uniformes-paradoxo em série? Criar uniformes singulares como o da Paradoxo Azul... e o dele? As tearcubas do povo neander praticamente só geravam os paradoxos amarronzados, cor de terra, e aquilo fortalecia a uniformidade dos neander, quase transformava-os numa colmeia. Euro ficou a divagar sobre o quão diferente seria a vida dos neander sem os uniformes-paradoxo; talvez houvessem sido extintos uma segunda vez.

A alcova onde os dois Prodígios estão é pequena e está atulhada de coisas quebradas. Alguém andara fazendo uma busca violenta pelos quartos e salas e alojamentos da torre, e aquele cristal cúbico era, por assim dizer, um sobrevivente do saque. Poderia ter muito a dizer, como poderia não dizer nada de útil. Mas valia a pena o tempo do procedimento – e enquanto isso os outros três vasculhavam o resto da torre.

No andar de baixo, Dova, Azif e Charya procuravam por mais indícios de quem havia roubado a tearcubadeira. “Quem sequer saberia a utilidade da tearcuba?” comentou Azif, intrigado. “O povo comum da cidade dificilmente reconheceria esse aparato. E na verdade entrar na torre daria azar, o lugar onde sacerdotes morreram e não foi consagrado em menos de três dias é sempre evitado. E os sinais aqui indicam que a invasão ocorreu depois desses três dias, pelos meus cálculos. Quem fez isso não ligava para os costumes religiosos da Terra Castanha.”

“Considerando que a cidade passou por uma guerra civil religiosa, acho que os únicos que ousariam profanar o lugar seriam bandoleiros atraídos pela miséria do Nomo das Torres,” afirmou Dova, com o olhar tristonho. “E também...” interrompeu suas palavras.

Sem recorrer à telepatia que estava usando antes – a quebra do elo mental havia exaurido um tanto sua mente – Charya perguntou, “E também o quê? Vamos, diga logo...” Por dentro, pensava que não seria nada, mas indagava por desencargo de consciência. O que Dova saberia de bandidos de estrada?

Mas foi Azif que respondeu. “Dalai tsu,” atalhou como se houvesse sido atingido por um relâmpago ou tivesse a ideia do século. “Eles não consideram certos costumes da Terra Castanha e a proibição de lidar com cadáveres desconsagrados é um deles.”

Dova falou, agastada: “Sim, foi isso que pensei. Mas pelo que sei, a única dalai tsu viva num raio de quinhentos estirões. Não fui eu,” riu sem graça, “logo devem ter sido mesmo bandoleiros.”

“É verdade...” desanimou-se Azif. “Mas, desculpe, Dova... não quis insinuar que sua família estaria por trás do roubo.” A Prodígio Branca pensou consigo, antes você falava mal de minha família. Agora tem mais tato... ou quase isso.

O pensamento de Dova vagou no ar e, pela primeira vez, Charya ouviu em sua mente o que outra pessoa estava pensando, e sem que uma mentaligação acontecesse antes. Empolgada, quase contou aos dois o que havia acontecido, mas preferiu manter-se calada. Talvez haja coisas que eu tenha que ouvir e esconder dos outros; melhor que eles não saibam que isso começou a acontecer. Charya atinou que, embora exausta, justamente por isso não estava se preocupando em transmitir palavras mentais – e então sua mente ficara receptiva. Era diferente de um elo mental, onde um canal era estabelecido com cuidado e preparo. Seria impossível manter uma conversação, pois ela só conseguiria “ouvir” quando não estivesse “falando.” Praticamente uma burocracia mental, e Charya sorriu com o canto da boca enquanto Azif e Dova continuavam a discutir sobre as pistas soltas no aposento, e sobre os bandoleiros da região. Provavelmente também não foi por acaso que ouvi os pensamentos de Dova – ela é uma catalisadora. Tudo em nossos poderes fica mais fácil com ela por perto. Espíritos do Ermo, rezou Charya por dentro, é quase como se ela fosse um ídolo de meditação, um totem, um fetiche, um amuleto vivo.

Uma mistura de inveja e carinho tomou Charya enquanto observava Dova. A mocinha notou a atenção, e ia dizer alguma coisa quando Berya apareceu na porta abaulada da alcova, segurando na mão direita o cubo de cristal anão.

“Eles saíram pelo subterrâneo. Nosso pequeno amigo indicou-me a entrada... e morreu.” Jogou o cubo sem brilho no chão, o rosto tentando aparentar indiferença, mas Charya percebeu no ar o pensamento errante da Prodígio Azul, “foi como torturar uma pessoa. Ou uma criança. Não quero fazer isso nunca mais.”

A Prodígio Vermelha engoliu fundo e a saliva desceu com um gosto amargo. Ela a havia instruído a fazer o serviço, então era a responsável. Seria seu fardo maior do que o da própria Berya?

terça-feira, 6 de março de 2012

PSICOMAQUIA

O Episódio 26 da SAGA DOS PRODÍGIOS se apresenta antes do tempo...




ALIENÍGENAS. SIMBIONTES. DEUSES. Você não se cansa disso tudo, Lacernos?

A voz projetada na mente do Barão Darin Lacernos antes era “ouvida” uma oitava acima do normal; agora a voz era mais grave e distinta, e nela havia uma nota de exaustão. Lacernos manteve os olhos fechados – abri-los causaria vertigem enquanto ele comungava com o kobold – e continuou segurando com firmeza a lasca de cristal anão no fundo do bolso de suas calças brancas. Pensou em réplica, Não quando nós podemos ser os deuses. Não foi isso que você me prometeu, Mordekai?

Ah. Finalmente admitiu me chamar pelo nome, respondeu a voz satisfeita do kobold. O problema é seu se gosta de assumir a identidade do seu antigo mestre; continuou Lacernos dentro da própria mente, não sou eu que estou iludindo a mim mesmo... e espero que você não ME iluda.

Nem cogitaria isso. Ao contrário dessa minha encarnação anterior na carne, nossa relação é uma parceria lucrativa. Não sou seu escravo, e nem você é manipulado por mim. Lacernos perambulou pela cripta observando o corpo inconsciente de Manyu Daury, atendido pela dra. Urizen. Cada ponto daquele refúgio era seu conhecido e ele podia perfeitamente deslocar-se ali no escuro, quanto mais de olhos propositalmente fechados e sem nenhuma ameaça imediata por perto. Veja bem, caro Mordekai. Você me disse que o rapaz poderia ser preparado para envergar um uniforme-paradoxo, mesmo que tenha passado da idade. Pois ele está desacordado há horas. O que está acontecendo?

Veja bem, soou a voz mental do kobold, os paradoxos terracota usados pela maioria do Povo Neander constituem apenas a casta mais baixa possível entre os simbiontes paradoxo. Se forem implantados num humano como você e ele, que já passaram pela puberdade, vocês sofreriam uma morte excruciante. Felizmente o material da tearcubadora é de extrema qualidade, e os conhecimentos que o Mordekai anterior recebeu dos Alienígenas me permitem contornar essas restrições. Humanos dotados de paranormalidade latente podem se unir a um paradoxo, caso sejam estimulados apropriadamente. Sua amiga Urizen pode criar a seguinte variação do composto 151 do Livro Secreto de Vincent...

“Pare,” falou Lacernos em voz alta, atraindo o olhar da dra. Urizen, que logo voltou a vigiar Manyu. Você já repetiu esse discurso umas três vezes. Está com algum defeito? Foi exatamente o que me disse quando nos encontramos pela primeira vez, na Torre Azul. A voz do kobold foi ouvida novamente dentro da mente de Lacernos, desta vez no tom agudo ao qual o barão havia se acostumado, Desculpe, estou cansado. Nós... relíquias de eras passadas... sobrevivemos de energia vital de nossos... “donos” para continuar funcionando. E eu tenho trabalhado muito, Lacernos. É apenas natural que alguns erros surjam. Eu sou... antigo, compreende?

Com a outra mão, Lacernos coçou a face um tanto enrugada. Perfeitamente. Entendo perfeitamente. Então, se o tal composto funciona como você diz, qual a razão... a voz do kobold voltou ao novo padrão e interrompeu, Creio que ele sofreu algum choque quando estimulamos suas capacidades latentes. Mas ele vai acabar se recuperando, e nesse ponto poderemos proceder à união. As sugestões murmuradas por você e por Urizen enquanto ele está em transe vão deixá-lo vulnerável ao nosso domínio, e principalmente eu poderei transmitir toda a minha programação – minha essência, em palavras que você possa entender – para os cristais do uniforme que estamos preparando, e quando isto acontecer poderei controlar não só a mente do rapaz como toda a malha viva do paradoxo. Nesse momento poderei geminar – e passarei a você uma cria de uniforme feita sob medida para você, com quem andei durante esses dias. E é por isso que você NÃO pode me tirar do bolso, ou de sua aura pessoal. Eu preciso do máximo de familiaridade.

Mordekai... a voz de Lacernos retomou, quando o kobold fez uma pausa. Você mais uma vez está se repetindo. Diga-me uma coisa, se você prefere energia vital humana, será que...

No outro cômodo da cripta, Grassi sussurrava preces aos deuses. Talvez imaginasse que tudo aquilo era uma blasfêmia, mas era subordinado do Barão, não sobreviveria fora da gangue, estava sendo praticamente obrigado... e pedia perdão às divindades da Terra Castanha por cooperar com aquelas ideias absurdas de criar novos deuses. Infelizmente para Grassi, a súplica de perdão pelos pecados do seu Barão não chegou ao final: sentiu um toque frio no pescoço, uma ardência quase paradoxal nas veias e caiu morto.

Satisfeito agora, Mordekai? Lacernos caminhou para fora do cômodo, ainda mantendo os olhos fechados o tempo todo. A voz do kobold ecoou estranhamente parecida com a de Grassi:

Muito, Barão. Ao menos por enquanto.

segunda-feira, 5 de março de 2012

MESTRES OU MONSTROS


Voltamos à SAGA DOS PRODÍGIOS em seu Episódio 25:





EURO ERA MOVIDO POR UM ÍMPETO jamais sentido antes. Havia uma vontade incansável que o levava a esmurrar aquela abominação daath. A gigantesca aranha parecia bastante ferida, mas Euro não conseguia sentir piedade do monstro. Mais um estrondoso murro nos palpos daquele demônio, e ela deveria cair.


E sem dúvida ela caiu. Euro praticamente dilacera a face da aranha com um soco, e sua aliada de vermelho, Charya, agora vestindo uma armadura crustácea e empunhando uma katana de duas mãos, a crava logo em seguida no cefalotórax do inimigo. Agressões suficientes para derrubar o demônio do Ermo de uma vez por todas.


E sobre o cadáver do monstro que estrebucha, uma forma espectral se ergue, flutuando como se debaixo d'água, um rapaz de olhar ensandecido, envolto numa aura de um verde doentio. NÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOO, é o brado que invade a mente dos cinco Prodígios, e a aparição some como se nunca tivesse estado ali.


Reação automática, um calafrio e uma fraqueza súbita abate o grupo, e seus uniformes-paradoxo retornam – dolorosamente – às suas formas anteriores. Embora à primeira vista a quem menos sofreu com as mutações repentinas, Dova ajoelha-se no chão, quase sucumbindo à posição fetal. Euro consegue abrir os olhos com mais nitidez e segura a Prodígio Branca pelo ombro, “Calma, você vai ficar melhor.” Desde que haviam saído do coma, Euro começara a sentir-se protetor com relação a Dova.


A mocinha levanta o rosto molhado de lágrimas e sangue de aranha, e tenta gritar mas a voz sai débil, “Não o reconheceu, Euro? Era meu irmão... Manyu! Mas ele está morto, morto, era um fantasma, um narakami.” O pouco que Azif conhecia da religião dalai tsu incluía os mitos dos narakami, espécie de demônios do Ermo que seriam na verdade almas em tormento, presas ao Ermo como aparições incorpóreas ou possuindo o corpo das feras que vagavam por ali. O Prodígio Negro recuperou suas forças, levantou-se a ajudou Euro a levantar Dova, murmurando suave, “Ele já se foi, deve ter se unido aos seus ancestrais.”


Berya havia permanecido em pé o tempo todo, estupefata, paralisada; e Charya tocou a fronte, tentando expulsar a dor de cabeça, notando que o elo mental havia desaparecido; os Prodígios não estavam mais mentaligados. Não fui forte o suficiente, pensou a moça, tanta dor, mas eu deveria ter segurado as pontas. Agora, só depois de meditar e dormir para recuperar a ligação. A voz de Berya, mais alta que os sussurros dos outros, interrompeu seus pensamentos, “Modo Brutal.”


“Sim,” continuou a Prodígio Azul, recitando cada palavra com firmeza, como se fosse um discurso decorado, “derrotamos uma aranha gigante com poucos golpes, seria praticamente impossível fazer algo assim antes. Este é o Modo Brutal dos uniformes-paradoxo, era como meu pai chamava um segundo estágio dos paradoxos. Uma teoria apenas, mas que está se provando verdadeira... e consigo me lembrar melhor de como meu pai falava da tearcubadeira, dos vislumbres vindos dos novos deuses, de suas hipóteses xenogoéticas... era um de seus objetivos, além de espalhar a devoção aos Alienígenas, criar uma elite que vestisse paradoxos brutais, a partir das sátrapas que o deviam lealdade. E eu seria a Soberana das Sátrapas... com toda certeza manipulada por ele... mas agora ele está morto...”


Charya pensou em uma série de perguntas aflitas quanto a alguns termos da fala de Berya, mas em vez disso retomou a compostura e perguntou, “E quanto à tearcuba? Você a destruiu na noite em que se uniu ao paradoxo?”


“Tenho certeza de que não,” respondeu Berya. “Mas há ainda algumas coisas que não lembrava, essa tearcubadeira foi em parte formada pelo kobold da Torre Azul.”


“Kobold?” fez Azif, enquanto segurava um braço de Dova, “não são ídolos de cristal anão que enfeitam as casas da aristocracia da Terra Castanha?” Berya assentiu com a cabeça, “Nem todos os cristais são kobold, esses são usados pelas servocratas que cuidam de propriedades importantes, para administrar e proteger a residência. Como lidar com eles é coisa que poucos sabem, e na verdade imagino que podem ser perigosos... o que cuidava de nossa casa às vezes repreendia a própria servocrata, causando tonturas quando ela agia de forma incompetente. E ouvi criados sussurrarem que o nosso kobold às vezes era malicioso.”


“Os nômades contam que as casas dos sacerdotes da Terra Castanha são assombrados por espíritos malignos,” raciocinou Charya, “talvez se refiram a esses kobold. De qualquer forma, há outra coisa também... Dova.”


A menina de branco soltou-se dos braços que a seguravam e enxugou os olhos, fitando Charya. “Dova, você presenciou a morte do seu irmão?”


“Não... mas os zelotes gabaram-se de ter matado a todos.” Charya respondeu com firmeza tranquilizadora, “Pare de chorar, e lembre-se do momento em que ele surgiu diante de nós: você é uma catalisadora. ELE ESTAVA VIVO?”


Dova respirou fundo e tentou deixar de lado os restos do desespero que a havia tomado quando viu o fantasma de Manyu. Como uma catalisadora psíquica, Dova podia intuir e curar; podia sentir energia vital. E ela havia se deixado enganar pelo pânico e pelas crenças de sua família: definitivamente aquela aparição tinha uma centelha de vida. Não era um narakami. “Sim...” um sorriso lhe dominou o rosto, e a aurora boreal do Ermo começou a raiar no horizonte. “Ele está vivo!”


Agora é só manter em segredo, por enquanto, de como eu sabia que ele está vivo, pensou Charya. Se eles souberem que eu estive do mesmo modo, flutuando naquele estado espectral, enquanto durou o coma, podem acabar descobrindo o que o Grão-Mestre fez enquanto estávamos desacordados. Eles vão ter que saber, mas não agora. Não no meio do Ermo, e a missão é mais importante que o próprio Grão-Mestre que a ordenou.


Fídias Bendante é que terá uma surpresa, quando retornarmos...

sábado, 3 de março de 2012

ETERNO RETORNO, BRUTAL RETORNO


Depois de vários meses, a SAGA DOS PRODÍGIOS retorna em seu Episódio 24...




A SITUAÇÃO PARECIA AO MESMO TEMPO DESESPERADORA e fácil de resolver. A aranha gigante não reagia bem aos golpes dos Prodígios, e logo seria derrotada. Em contrapartida, e era isto com que Charya se preocupava, Euro e Azif a enfrentavam trajando a brutal variação do uniforme-paradoxo que usaram quando estavam presos dentro da mente da Prodígio Vermelha – coisa que ela pensou ser apenas parte daquele sonho coletivo.


O sonho se tornava ainda mais realidade: o uniforme de Berya, ao seu lado, se modificava assumindo o aspecto de uma carapaça azulada, e a novata retirou uma segunda espada curta do antebraço. Logo um fogo elétrico irrompeu das duas espadas unidas e atingiu a aranha daath a metros de distância. Bem, as ameaças imediatas primeiro, pensou Charya, e fez um sinal telepático a Dova para que com ela avançassem contra o inimigo monstruoso.


A mocinha fez uma série de piruetas evitando os pontos mais perigosos daquele terreno e saltando de modo a alcançar primeiro a aranha gigante; e nesse movimento seu uniforme-paradoxo ia mudando, retraindo-se para revelar os ombros nus de Dova, e o báculo nas mãos da garota se transformava num longo cajado. O novo e brutal armadoxo da Prodígio Branca finalizou sua manobra, desferido com audácia e precisão contra a daath.


Charya tentava não repassar pelo elo mental sua sensação de surpresa com tudo aquilo; e a sensação se tornou ainda mais forte quando o calor tomou conta de seu corpo, o suor invadiu primeiro sua testa, depois todo seu corpo, até por baixo do uniforme simbionte, e uma quase fraqueza e náusea a fez estacar, paralisada diante dos quatro amigos atacando a aranha.


O suor aumentou causando uma coceira forte na pele de Charya; ela engoliu em seco e sentiu o elo mental desaparecer, depois a cena diante de si perdeu sentido, só ela existia, ela se recusava a estar ligada a qualquer coisa, enquanto sentia aquilo; a coceira evoluiu para uma sensação de prazer, e Charya apertou com força o cabo de sua katana armadoxo.


Foi quando o mundo se desfez diante de si, e mais uma vez Charya perdeu-se dentro de sua própria mente. Memórias corriam e voltavam, o rosto de um homem severo, uma voz dizendo, “Barão, barão...” uma fuga desesperada pelo deserto... sua quase morte no Ermo da Condenação e seu resgate pelo Grão-Mestre Bendante e seus filhos. E de repente as memórias tão vívidas dão um salto, e Charya vê a si mesmo deitada, seus quatro amigos deitados ao seu lado, na caverna dos contrabandistas, e Anisha ali cuidando deles. Bendante pede a Anisha que vá cuidar dos suprimentos em falta, e fica sozinho com os cinco Prodígios desacordados.


Charya sentia-se como uma presença incorpórea elevada logo acima de seu próprio corpo. O Grão-Mestre erguia a cabeça de Azif e abria seus olhos com uma pinça. Depois chegava o rosto mais perto e recitava algumas palavras, que Charya a princípio pensou serem de conforto. Mas não, Bendante pronunciava, “Fique perto de Charya e Dova... deixe Euro e Berya de lado... fique perto de Charya e Dova... deixe Euro e Berya de lado...” repetindo várias vezes.


Assombrada a moça viu o pai de Azif repetir essas palavras num estentor hipnótico, várias vezes, diante do rapaz em coma; e depois passou ao rosto da própria Charya, abriu-lhe um dos olhos com a pinça, e recitava: “Você é uma arma, você é um paradoxo, você rasga seus inimigos e é empunhada por Dova; você é parte de Dova. Você é uma arma, você é um paradoxo, você rasga seus inimigos...” várias e várias vezes, até que Charya não aguentou, rompendo a inércia do transe lethean e movida pela raiva, naquele estado espectral tentou atacar o Grão-Mestre e impedir aquela loucura.


Fechou os olhos de raiva, segurando a katana com as duas mãos, e ao fazê-lo rompeu o transe – mais uma vez, Charya envergava o modo brutal de seu uniforme-paradoxo, só que agora era tudo verdade, ela estava acordada como jamais estivera, e a armadura crustácea que cobria seu corpo não impedia seus movimentos nem a vontade de rasgar em duas aquela aranha maldita, só para descontar a vontade que tinha de punir o Grão-Mestre Bendante.


Com a katana de dois gumes nas mãos, a Prodígio Vermelha marchou para ajudar seus amigos a finalizar a morte daquele monstro.




Compilações das fases anteriores da SAGA DOS PRODÍGIOS