sábado, 24 de setembro de 2011

CINCO NOBRES VERDADES

Arthur Ferreira Jr.'. revela o Capítulo Dezesseis da SAGA DOS PRODÍGIOS




Meu filho, somos peregrinos numa terra profana.
Citação do pai do semideus Último Cruzado,
supostamente referindo-se ao Ermo da Condenação




“PELOS... QUATRO... BESOUROS SAGRADOS... DOVA...! o que foi que você fez com esse coitado?” Azif cogitou segurar de fato o pulso da companheira, mas preferiu não fazê-lo. Quase sentia medo da expressão furiosa da menina – era quase como se ela estivesse também disposta a esmigalhar a ele e a Euro.

        “Azif... ele não só não era meu irmão,” Dova inspirava e expirava fundo, “como não era nem mesmo uma pessoa real.”

        “Hã?” Azif abriu a boca, atônito, enquanto Euro balançava a cabeça como se concordando.

        “Quando eu te resgatei do lodaçal, andamos por várias árvores... a minha sensação diante desse rapaz, ao chegar perto dele, era a mesma de ao passar perto dessas árvores ou ao tocar na vegetação da pradaria que atravessamos. Ele não é uma pessoa.”

        O céu começava a escurecer como se prenunciasse chuva e Azif disparou: “Mas isso é insanidade! E você já estava bem estranha!”

        “É mesmo? Vou ignorar esse comentário agora... temos mais coisas pra resolver. Vamos lá. Pra começar, como vivemos parar aqui? E onde diabos é isso aqui? E, Euro, onde é que está Charya? Por que você pediu antes a espada dela, se referindo como a 'espada da Adversária'?”

        Uma leve chuva começou a cair sobre os três e sobre o cadáver (seria mesmo um cadáver?), mas ninguém saiu do lugar. Euro respondeu, “Acho que sei o que está acontecendo aqui. Depois que ela matou esse sujeito...” virou-se para Azif, sério, “as coisas ficaram mais claras para mim. Dova, você não conheceu Charya.”

        “É verdade. Não a conheci como vocês dois.”

        “Lembra-se que foi ela que desferiu o golpe final no monstro... depois disso nós caímos todos?”

        Azif arregalou os olhos. “É verdade! Como pude me esquecer disso? Eu pensei ter sido devorado pela criatura! E ela estava mentaligada a todos nós.”

        “A mesma coisa comigo,” complementou Dova. “Depois disso eu revivi minha vida toda, e pensei ter morrido até aparecer numa árvore do lodaçal onde achei Azif... e senti ele próximo. E estava furiosa.” Paradoxalmente, a fúria no olhar de Dova foi se acalmando.

        A chuva, ao contrário, foi ficando mais forte. “Charya era uma letheana.”

        “Lethe...  como assim, Euro?”

        Azif atalhou, “São os neander que não conseguem retrospectar... ter acesso às memórias raciais da espécie...”

        “E qualquer um que tenha amnésia. Sabe o que é isso, não, Dova?” perguntou Euro, apoiando a mão no ombro de Azif.

        “Sim, acho que sei, mas o que é que isso tem a ver?” A fúria ameaçava voltar, mas ela se controlou.

        “Tem a ver que ela é uma telepata!” gritou Azif. “Como foi aquela história que papai nos contou, Euro?”

        “Telepatas têm o mundo interior muito vívido... e telepatas lethean são usados pelo meu povo para armazenar as principais memórias da raça, assim cada neander tem um acesso emprestado a memórias dos neander de quem não descende.”

        “Como um espaço vazio que pode ser preenchido... então quer dizer,” falou Dova meio tremendo com a chuva que piorava, “que nós estamos dentro da mente de Charya?”

        “Exatamente,” respondeu Euro meio perturbado com o que ele mesmo dizia, “e ela é a Adversária que jaz morta na Torre Vermelha, lá na cidade de onde vim.”




        “MORTA?” Azif segurou a mão de Euro com força.

        “Eu acho... não tenho certeza... mas acho que isso é só um símbolo, de que ela está inconsciente, perdida, caída dentro de si mesma. Nós temos que salvá-la, acordá-la de algum modo... tipo, como vocês me despertaram?” O meio-neander virou-se para Dova, esperançoso.

        “Sim...” Dova esboçou um sorriso que logo se desfez. “Mas, espera aí. Não está faltando alguém?”

        “Berya Mordekai, do uniforme-paradoxo azul,” a voz de Azif soou ominosa e solene. “Euro... se Dova apareceu perto de mim, então você...?”

        “Nossa irmã, Berya.” O meio-neander apertou os olhos. “Nem eu sabia e de algum modo essas memórias falsas – agora posso reconhecê-las como falsas – me mostraram a moça de cabelo azul que estava dominada pelo monstro, e que nos ajudou a derrotá-lo depois... e ela é filha de Kashramael como eu e você, Azif.”

        “Hein? Disso eu não sabia, pensei que fosse filha do Alto Sacerdote com uma das concubinas...”

        “Hmpf,” fez Dova enquanto enlaçava Azif e Euro pela cintura e a chuva caía mais forte, “parece então que vamos ter que salvá-la também; ela é parte da família de vocês.” A Prodígio Branca sorriu um tanto maliciosa. “Onde é que ela está, Euro? Presa na cidade, também?”

        “Mais do que isso, Dova. Ela é a Soberana do nomo das Torres. Sátrapa e Matriarca. Vamos ter problemas.”

        “Espere, Euro...” interrompeu Azif. “Matriarca? Ela nunca poderia ser Matriarca usando um uniforme-paradoxo! Não poderia ter filhos! Como...”

        “Isto aqui é um sonho que parece muito real, lembra? Olha só essas joias e amuletos pelo meu corpo. Só precisa fazer sentido até certo ponto...”

        “Esperem vocês,” atalhou Dova enquanto um trovão rugia nos céus. “Não poder ter filhos, como assim?”

        “DEPOIS eu explico isso direito, vamos andando que está chovendo forte demais,” respondeu Azif nervoso, soltando-se de Dova e dando passos pela estrada. Apontou o dedo na direção da cidade. “Euro, você vinha nos prender, certo? Então nos leve para dentro da cidade como falsos prisioneiros e direto até onde está Charya... se a despertarmos primeiro acho que vamos todos acordar desse delírio terrível sem precisar lidar com Berya. Ela pode ser nossa irmã mas eu prefiro a conhecer como ela é de verdade e não como uma tirana.”

        “Ela não é tirana sozinha,” respondeu Euro meio envergonhado, conduzindo Dova que entrara em modo pensativo e apontando para a biga planadora. “há o Alto Sacerdote, que deve ser tão real como esse cadáver que vamos deixando para trás e... havia eu.”

        O trovão rugiu persistente, e relâmpagos caíram ao longe. Começava a ficar escuro.

        Vai ser uma longa noite, pensou Azif.

Um comentário:

  1. PUBLICADO ORIGINALMENTE EM
    http://insanemission.blogspot.com/2011/04/cinco-nobres-verdades.html

    Citação inicial é originalmente uma fala do filme Indiana Jones e a Última Cruzada.

    IMAGENS E ILUSTRAÇÕES, FONTES E AUTORES

    1 e 2
    Ilustrações digitais de Mario Wibisono
    http://www.dumage.com/impressive-digital-girls/

    3
    Lion Before Storm II, de Nick Brandt
    http://cdavanzo.blogspot.com/2010_08_01_archive.html

    4
    Synthetic Storm (desconheço autor)
    http://downloads.open4group.com/wallpapers/1024x768/synthetic-storm-6274.html

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